domingo, 16 de junho de 2013

A Precisão Histórica do Livro de Daniel - parte 1

Tema 15

A Precisão histórica do
livro de Daniel - parte 1

Dr. José Carlos Ramos
Junho de 2013

    O livro bíblico de Daniel toma emprestado seu título de seu protagonista principal, o profeta Daniel. O nome significa Deus é meu juiz, e sugere um de seus temas preponderantes.
    O título não indica necessariamente a autoria, já que alguns livros do Antigo Testamento foram certamente escritos não pela pessoa cujo nome serve de título, como é o caso de Rute, Ester e Jó. Quanto a Daniel, porém, tem sido a posição tradicional tanto de judeus como de cristãos que o livro foi escrito pela própria pessoa que ostenta esse nome, sendo a época de produção o 6º século a.C., e o local a Mesopotâmia, com especial referência a Babilônia. Tanto os eventos históricos ali narrados quanto as visões atribuídas ao profeta são consideradas genuínas.
     Salvo pelas argumentações em contrário da pena de Porfírio, néo-platonista anti-cristão do 3º século, e do judeu Uriel Acosta no início do século 18, essa posição só passou a ser seriamente questionada de uns 200 anos para cá. Hoje o pensamento teológico liberal, com base nos postulados da alta-crítica, afirma que o livro foi escrito por um judeu piedoso, anônimo, por volta de 165 a.C., com o propósito de incentivar a resistência por parte dos compatriotas à tirania do rei sírio Antíoco Epifânio (175-164 a.C.) em sua tentativa de helenizar a Judéia. O referido escritor teria optado pelo nome Daniel para o protagonista de seu livro, com base em Ez 14:14 e 28:3, onde alguém com mais ou menos o mesmo nome é referido como justo e sábio.
     A exemplo de Porfírio, os teólogos que sustentam esta opinião negam o elemento preditivo da profecia de Daniel, e atribuem à obra o caráter de vaticinia ex eventu, um registro de fatos históricos numa feição profética. Segundo a hipótese liberal, as únicas predições reais do livro estariam em 8:25 e 11:40-45, e teriam a ver com o futuro de Antíoco, principalmente o local e a maneira de sua morte, previsões que não se cumpriram. A obra, portanto, deveria ser rotulada de fraude piedosa através de uma ficção literária. Igualmente a idoneidade dos relatos históricos aí registrados é colocada em dúvida.
     Os liberais consideram a posição tradicional insustentável quando confrontada com as evidências internas e externas do livro. Muito bem, comecemos, então, a ver se isto, de fato, procede. De início, analisaremos dois detalhes históricos, supostamente inexatos: o começo do reinado de Nabucodosor, e o sentido restrito do termo caldeu empregado por Daniel. Tomemo-los em consideração a vermos se realmente são inexatos.
           
O Começo do Reinado de Nabucodonosor

     Segundo os críticos o livro, em sua abertura, diverge de uma informação prestada por outro escritor sagrado. A discrepância é suposta quando se faz uma comparação de Dn 1:1 com Jr 25:1 e 42:2. Naturalmente a crítica considera o livro de Jeremias muito mais confiável em termos de narrativa histórica.
     Duas dificuldades são pretendidas com base nesta comparação:
         (1) Segundo Jeremias o 1º ano de Nabucodonosor, rei de Babilônia, corresponde ao 4° de Jeoaquim, rei dos judeus. Logo, no 3º ano de Jeoaquim, Nabucodonosor não poderia ser rei, como o autor de Daniel afirma.
       (2) A batalha de Carquemis, na qual Nabucodonosor derrotou Neco II do Egito, ocorreu, segundo Jeremias, no 4º ano de Jeoaquim. O texto deste profeta dá a entender que Jerusalém não havia sido perturbada por Nabucodonosor antes desta batalha. Os críticos, então, pensam que o autor de Daniel se equivocou ao afirmar que, no 3º ano de Jeoaquim, Nabucodonosor invadiu Jerusalém. Imaginam que, fosse o autor do livro um contemporâneo de Jeremias, esses equívocos não seriam cometidos.
     Na realidade, os equívocos não foram mesmo cometidos. As dificuldades acima desaparecem quando se leva em consideração que dois sistemas de computação estão aqui envolvidos: o sistema babilônico, empregado por Daniel, e o sistema palestino, empregado por Jeremias. O primeiro identificava como ano de ascensão aquele em que o rei começava a reinar, passando o ano seguinte a ser considerado o primeiro. O outro sistema ignorava o ano de ascensão e colocava o rei, já no início do reinado, em seu primeiro ano. Esse fato foi satisfatoriamente comprovado pelas pesquisas feitas por Edwin R. Thiele, cujos resultados aparecem em seu livro The Misterious Numbers of the Hebrew Kings.
     Uma comparação dos dois sistemas pode ser assim estabelecida:

ANO  a.C.
REI JEOAQUIM
   Sist. Babilônico         Sist. Palestino                                                             
REI NABUCODONOSOR
    Sist. Babilônico      Sist. Palestino
608
Ascensão
1º ano
-
-
607
1º ano
2º ano
-
-
606
2º ano
3º ano
-
-
605
   3º ano (Dn 1:1)
4º ano (Jr 25:1; 42:2)
Ascensão
1º ano
604
4º ano
5º ano
1º ano
2º ano
603
5° ano
6º ano
2º ano (Dn 2:1)
3º ano

     Isso explica também porque no 2º ano de Nabucodonozor Daniel e seus companheiros já eram contados entre os sábios de Babilônia (Dn 2), quando o escrutínio do rei, para os classificar assim, ocorreu depois de 3 anos de preparo (1:5, 18, 20), cálculo inclusivo. Estes 3 anos são: 605, 604, 603.
     Em vista do exposto não há porque imaginar que o evento de Dn 1:1 e 2 tenha ocorrido antes da batalha de Carquemis. Flávio Josefo cita o historiador e sacerdote babilônico Beroso, segundo o qual a presença de Nabucodonosor foi sentida na Palestina no começo do verão de 605 a.C., ao sufocar, no Egito, uma rebelião que envolveu a Fenícia e a Síria. Beroso fala dos cativos, entre eles judeus, que Nabucodonosor deixou sob os cuidados de seus generais, ao apressar seu retorno a Babilônia para ocupar o trono de seu recém-falecido pai, Nabopolassar. Levando-se em conta que Daniel relatou esse fato, com muita probabilidade, no primeiro ano de Ciro (Dn 1:21), 536 a.C.,  não é de se estranhar que haja antecipado a Nabucodonosor o título de rei no evento de 1:1.
    Assim considerada, esta não é absolutamente uma dificuldade para os que sustentam a posição tradicional quanto à autoria e época de produção do livro de Daniel, e sim para os que defendem o ponto de vista liberal. Como é possível que um judeu, vivendo no 2º século a.C. na Judéia, ignorou o sistema palestino de computação e utilizou o sistema babilônico, em voga no 6º século na Mesopotâmia? Essa dificuldade se volta com maior ímpeto contra aqueles próprios que a advogam quando nos lembramos que o escritor de Daniel estava familiarizado com o conteúdo de Jr 25, que fala dos 70 anos do cativeiro judeu em Babilônia (ver Dn 9:2). Não é muito estranho que ele tenha ignorado a designação do “4º ano de Jeoaquim” feita por Jeremias?
   É muito mais natural, portanto, supor que, vivendo no 6º século a.C. na Mesopotâmia, o autor não ignorou essa designação, tendo apenas optado pelo sistema vigente naquela região onde viveu e escreveu seu livro.

O Sentido Restrito do Termo Caldeu

   Este termo é empregado em Daniel com um sentido mais restrito, isto é, em referência a uma classe especial de sábios em Babilônia. É suposto que esse fato evidencia uma ocasião posterior para a produção do livro já que nos textos cuneiformes do 6º século a.C., a exemplo do restante do Antigo Testamento, o termo não é empregado a não ser com uma conotação étnica significando a raça oriunda da Caldéia.
    Antes de tudo, devemos notar que Daniel emprega o termo caldeu também com o sentido étnico em 5:30, 9:1 e possivelmente 1:4. Com o sentido mais restrito o termo é empregado em 2:2, 4, 5, 10, 4:7, 5:7, 11, e possivelmente 3:8.
     Tudo o que a crítica pode aqui reivindicar em seu favor é o testemunho do silêncio, pois é verdade que as inscrições cuneiformes do período néo-babilônico, até agora conhecidas, não registram o emprego do termo com o sentido restrito. Mas o silêncio não é nem tão eloquente nem tão duradouro. É uma impropriedade cobrar das inscrições uma catalogação completa dos sábios de Babilônia. Por outro lado, as informações de Heródoto, historiador grego do 5º século a.C., dão conta em seu Guerras Pérsicas que os caldeus exerciam uma função sacerdotal desde pelo menos o início do reinado de Ciro (559 a.D.). Se isso ocorria quando os persas dominavam, por que não ocorreria quando os próprios caldeus dominavam?
   É bom lembrar que a Caldéia inicialmente foi um distrito ao sul de Babilônia, mas nos tempos de Nabucodonosor designava toda ela. Considerando que em 625 a.C. Nabopolassar subiu ao trono de Babilônia e deu início aos 87 anos da dinastia caldaica, não é difícil supor que um grupo de caldeus passasse a ocupar uma posição de destaque nos assuntos governamentais. Aliás, eles são referidos com deferência já nos anais assírios desde os tempos do rei assírio Assurnasirpal II (9º século a.C.). Os registros reais de outro rei assírio, Adade-Nirari III que governou cem anos mais tarde, mencionam pelo nome vários caldeus que eram chefes preeminentes entre seus vassalos. Portanto, o grupo agora dominante, era possuidor de uma tradição político-religiosa. Ao termo caldeu, então, Daniel aplicou um sentido restrito, voltado às atividades que o grupo desempenhava.
       No próximo tema analisaremos outros detalhes históricos do livro de Daniel que a alta-crítica considera serem inexatos, para observarmos que, a exemplo destes que acabamos de ver, são autênticos e, portanto, dignos de crédito.