terça-feira, 6 de agosto de 2013

Tema 18: A Autenticidade da Mensagem de Daniel



Tema 18

A Autenticidade da
Mensagem de Daniel

Dr. José Carlos Ramos
Agosto de 2013

                Temos observado que a genuinidade do livro de Daniel é incontestável, apesar do empenho da alta-crítica de se valer das alegadas imprecisões históricas da narrativa para demonstrar o contrário. Essas imprecisões, todavia, são apenas aparentes. A forma como o livro foi escrito, bem como seus temas teológicos e sua mensagem profética, não conspiram contra a posição tradicional, que sustenta o sexto século a.C. como a época da produção de seus manuscritos e atribui ao profeta Daniel a autoria dos mesmos.

Aspectos Literários

            Tem-se alegado que a forma literária do livro de Daniel indica uma autoria múltipla, e evidencia uma produção posterior, pelo menos parcial, da obra. Em resultado, a credibilidade do livro quanto à sua mensagem é fortemente questionada. Como já observamos, os críticos sustentam que um judeu anônimo teria escrito o livro em forma de história e profecia no segundo século a.C., com o objetivo de fortalecer a resistência judaica à helenização da Judéia imposta pelo rei Sírio, Antíoco Epifânio. Agora notamos que a crítica se vale de outro argumento para negar ao profeta o papel de escritor: a autoria múltipla.
            São alegados os seguintes pontos a favor dessa hipótese: (1) a estrutura do livro: história e profecia sugerem mais de um autor; (2) o padrão de escrita: não uma uniformidade plena; são inseridos trechos poéticos num texto prosaico; (3) os fatores linguísticos: são empregados dois idiomas principais na composição, hebraico e aramaico; além disso, o registro de determinado número de termos gregos e persas; e (4) a forma de tratamento: referência ao profeta Daniel é feita inicialmente com o emprego da terceira pessoa, para, então, ser utilizada a primeira.
            Na verdade, nenhum desses pontos realmente substancia o conceito da autoria múltipla e da produção posterior do livro. Elas tocam diretamente o assunto de unidade que, entendemos, não conta com conclusivas razões para ser colocada em dúvida. Uma combinação de profecia e história aparece em outras partes da Bíblia anteriores à época tradicionalmente aceita para a produção de Daniel, como, por exemplo, o livro de Isaías. Isto é verdade mesmo que se admita a teoria do trito Isaías, sustentada pela alta-crítica e segundo a qual ⅔ do livro foram produzidos depois que os judeus regressaram do cativeiro babilônico, pois o relato histórico registrado nos capítulos 36-39, isto é, no primeiro ⅓ do livro, é considerado pelos críticos como pré-exílica.
            O segundo ponto também perde sua força, quando se nota que um documento tão antigo como o Código de Hamurabi prefacia e conclui poeticamente um texto em prosa, ou que o livro de Jó que introduz e conclui prosaicamente uma vasta seção poética. Certamente tal fato não pressupõe autoria múltipla para esses documentos. Por que iria pressupor para o livro de Daniel?
            Quanto aos fatores linguísticos, lembro que o hebraico de Daniel é similar ao de Ezequiel e os livros imediatamente pós-exílicos, ao passo que é bem distinto do hebraico de Eclesiástico, obra apócrifa do segundo século. Quanto ao aramaico, determinadas construções antes consideradas tardias em forma e emprego, aparecem nos textos Ugaríticos de Ras Shamra, tão antigos quanto o tempo da conquista de Canaã pelos hebreus. Isto demonstra que a avaliação crítica de um idioma por meios meramente subjetivos pode conduzir a conclusões equivocadas. Estudos mais ou menos recentes, fundamentados em certos achados arqueológicos, confirmam a opinião de que o aramaico de Daniel, em linhas gerais, se aproxima daquele empregado em círculos políticos do sétimo a.C., e que mais tarde “se espalhou pelo Oriente Médio. As formas linguísticas estão intimamente relacionadas com a linguagem dos papiros egípcios de Elefantina [quinto e quarto séculos a.C.], tanto quanto com as seções próprias do livro de Esdras.” R. K. Harrison, “Daniel”, The Zondervan Pictorial Encyclopedia of the Bible, 2:17, 18.
            Aliás, vale mencionar que a exemplo de Daniel, Esdras também foi escrito parcialmente em hebraico e aramaico, e nem por isso lhe é atribuída uma autoria múltipla, embora não se descarte a presença de um editor. Por que, então, mais de um escritor teria concorrido para a produção de Daniel?
            À mesma conclusão se chega pelos estudos linguísticos feitos por Gleason L. Archer Jr., em cinco colunas de um documento datado do primeiro século a.C., conhecido como Gênesis Apócrifo e encontrado na caverna 1 em Qumran, sítio do achado dos famosos rolos do Mar Morto. O aramaico deste documento difere totalmente do aramaico de Daniel em ortografia, gramática, sintaxe e vocabulário. A este respeito, diz Archer: “Sumariando, poderia ser dito que o Gênesis Apócrifo fornece evidência muito poderosa de que o aramaico de Daniel vem de um período consideravelmente anterior ao segundo século a.C.” New Perspectives on the Old Testament, 169.
            As palavras persas e gregas no livro igualmente não provam nada quanto a uma data posterior de produção, e à hipótese da autoria múltipla. As primeiras não surpreendem, já que o próprio livro avança até o tempo do domínio persa; os termos pertencem à forma mais antiga do idioma e não à mais recente. As palavras gregas são mais técnicas, identificando os instrumentos musicais de Dn 3. Hoje está comprovado que a cultura grega havia penetrado no Oriente Médio antes mesmo do domínio persa. E, convenhamos, nada impede que determinado escritor se valha de termos estrangeiros, principalmente se são conhecidos e comunicam bem o que se deseja transmitir.
            Finalmente, a forma de tratamento variando entre a primeira e terceira pessoas não indica diversidade de autoria, e é um recurso literário perfeitamente válido para o sexto século a.C., quanto para antes dele; basta que se note o mesmo emprego no livro de Jeremias (38:6, etc.) e em textos ainda mais antigos (Pr 1:1; Ec 1:12; 12:8-10, etc.), obras que, em geral, são consideradas de autoria exclusiva.

Temas Teológicos

                O messianismo, a angeologia e os temas do juízo e da ressurreição em Daniel têm sido evocados pelos críticos como evidência da posterior composição do livro. Estes assuntos, segundo eles, aparecem tão bem elaborados que não podem provir de um escritor do sexto a.C. Eles se aproximam mais da forma como as produções pseudo-epígrafadas e as apócrifas do período interbíblico os apresentam.
            Este ponto de vista carece de maior substanciação. O messianismo de Daniel foge ao estilo dos apocalípticos intertestamentais e se aproxima consideravelmente de outras obras bíblicas como Isaías e Zacarias, e mesmo Malaquias. A angeologia, de fato, é mais elaborada do que a dos livros pré-exílicos (referência aos anjos na Bíblia é feita desde Gn 3), mas é menos do que a das produções não bíblicas, oriundas dum período posterior. Ela é idêntica a de Ezequiel e Zacarias, esta última inclusive no fato de anjos explicarem as visões, o que também ocorre em Daniel. É verdade que este é o único escritor do Antigo Testamento a fornecer alguma identidade angélica, mas isto é feito não com a excentricidade das obras apócrifas. Apenas um anjo é designado por nome, Gabriel, e mais um ser glorioso, mencionado como Miguel, que com muita probabilidade aparece como príncipe do exército do Senhor em Js 5:13-15. Em contrapartida, o livro apócrifo de Enoque, oriundo do segundo século a.C., menciona o nome de 19 anjos caídos, 4 anjos fiéis, e 7 arcanjos.
            O tema da ressurreição aparece em Jó, Isaías, Ezequiel, e nos Salmos, enquanto o do juízo é visto em Isaías, Ezequiel e nos profetas menores. Neste ponto Daniel se destaca dos apocalípticos posteriores os quais estabelecem uma “passividade ética” na obra divina do julgamento imediato. Em Daniel, todavia, Deus preside os negócios do mundo, pois Ele é visto como o Altíssimo Soberano dos reis da Terra. Por isso Seus juízos não esperam apenas pelo dia final do ajuste, mas podem operar em qualquer tempo, incluindo o do próprio profeta. E esta é a visão geral da Bíblia sobre o assunto, em que pese o fato de o “juízo final” ter a sua importância.
            Em minha próxima postagem analisarei a validade da mensagem profética de Daniel.